sábado, 25 de abril de 2009

EXISTE MESMO A CRÍTICA DE TV?


Apesar do texto de Távola ser bem datado, e talvez por isso mesmo, é muito interessante o debate engendrado por ele sobre a crítica de TV. Esta seria bem mais influente que a de cinema ou literatura porque conduz a mediação não apenas com público, mas igualmente com os diretores e roteiristas de TV. Ela pode até ser contestadora, mas protesta dentro da lógica sistema. Segue o texto de Távola escrito em 1976 !

EXISTE MESMO A CRÍTICA DE TV?

Eu só falo sobre o que vale o a pena, só reclamo de quem tem para dar ou do programa que pode melhorar; só exijo de onde pode sair algo bom; só bronqueio com quem gosto; só critico a quem admiro e de quem algo espero; só destaco programas que representam algo vivo, brasileiro, fecundo.

O leitor deve observar minhas constância e insistência em temas, assuntos, programas e profissionais de tevê com algum conteúdo ou forma representativos de significados culturais. Pouco, raro ou nada aludo a programas estratificados na mesmice ou realizados por teimosos definitivos, ou por pessoas que só sabem fazer um gênero e nele ficam a vida inteira mesmo quando já passou e eles não sabem ou fingem não saber.

Estou dizendo essas coisas, pois nesses dias comemoro quatro anos de críticas diárias aqui no GLOBO. Quero - hoje, amanhã e depois - dizer algumas coisas objetivas e subjetivas sobre o relacionamento de um cronista diário com o seu leitorado e com o assunto no qual ele se especializa. É que há anos venho batalhando pelo que chamo de crônica aplicada. Não é crítica . É uma forma de crônica aplicada a um determinado assunto especializado. Chamam da critica de televisão. Va lá. Adoto a expressão, por preguiça de ficar explicando. Mas não é. Em televisão o cronista vê junto com o publico. Testemunha com ele. Isso muda tudo.

Uma das peculiaridades interessantes do crítico de televisão (se é que o gênero existe) é a da poder influir no processo criativo. Ele influi no processo, exatamente porque vê junto com o público.

O critico de teatro influi sobre o publico, a quem orienta. Mas a obra que é alvo de sua critica já está montada, encenada, concebida a dirigida. O critico da cinema, idem. O filme lá está aprisionado no celulóide. Idem o literário. O livro lá está escrito, impresso, distribuído etc.

Vala dizer, até o surgimento da televisão, a crítica sempre funcionou como um guia para o publico, sendo o exercício de uma tarefa cultural da mais alta relevância: a de ser ponte de interpretação e lucidez entre a obra da arte e o público. Nesse sentido, aliás, poucos gêneros atingiram a altura da crítica literária.

Mas da televisão em diante a coisa muda um pouco. Em primeiro lugar, porque a televisão não tem ainda (20 e poucos anos da existência, apenas) um nível de elevação e profundidade das artes a ela anteriores. Em segundo lugar, porque sendo uma indústria cultural a sua preocupação é muito mais com o produto destinado a um consumo previsto, balizado e pesquisado, do que com a idéia de "obra".

Em terceiro lugar surge o dado interessante: na televisão o crítico pode influir. Mesmo que não queira ele participa do próprio processo de criação, da estratégia geral. Este sim é um ponto inteiramente diferente, novo e revolucionário na historia desse que gênero que se chama "critica".

Os programas são semanais. A produção é nacional. A própria dramaturgia televisada (a novela) vai sendo feita enquanto está no ar (é obra aberta, há influências). Na televisão, é muito, muito, incomensuravelmente mais intensa, a mútua influência do trinômio: público, centro produtor, pólos de repercussão (crítica).

Nas outras artes o que funciona é o trabalho solitário do criador. Depois é que se aplicam a esse trabalho os ditames da Industria cultural. Na televisão, não. Nela, o que funciona é uma permanente interação desse trinômio: público (telespectador como um todo expresso nas pesquises diárias); centro produtor (os canais e as redes de televisão) e os pôlos de repercussão (representantes da norma culta da sociedade. Intelectuais (?) que opinam sobre o produto, também chamados de "críticos", por analogia com as artes anteriores à televisão). Este trinômio Inter-age (ó revisão, eu sei que é junto, mas deixe separado "Inter-age". Fica mais claro o conceito porque mais visual a palavra). E é exatamente por isso que a "crítica" de televisão, diferente de toda qualquer outra forma de crítica (teatro, cinema, artes plásticas, literatura), pode influir no processo criativo.

A "crítica" de televisão é bem mais intranscendente; mas é bem mais influente. Ela é parte integrante do sistema que mantém a Industria cultural, por mais que se coloque na posição de permanente contestação. Ela contesta dentro do sistema. E é isso o que fez muita gente torcer o nariz à critica de televisão. Ou o crítico sentir-se culturalmente pouco "importante" por exercê-la, daí ser impiedoso com a tevê.

Além disso, ela não joga apenas (eu disse apenas) com categorias estéticas e ideológicas. Ela precisa se servir igualmente de três outros elementos: da sociologia (da comunicação); da psicologia (Idem) e do conhecimento da técnica de elaboração dos programas, ou seja o solido conhecimento do funcionamento interno tanto de um canal de tevê como de cada programa, como, ainda, da engenhoca eletrônica que edita e corta as imagens, sons, vozes, ruídos etc.

Frente a esse quadro o exercício da "critica" de televisão é um exercício penoso, difícil, dispersivo, eternamente relativista porque sempre depende do ângulo pelo qual se enfoque o problema. E o que acontece geralmente é que os critérios estéticos a ideológicos, por serem mais profundos, básicos, sedutores e determinantes (além de darem mais "status" para quem os utiliza) acabam por predominar sobre os demais. podendo levar a quem exerce a "critica' de televisão a se afundar na negação liminar de um processo como o televisivo que é composto igualmente dos outros vetores já citados.

Cabe, portanto, ao crítico da televisão, muito mais do que enfeixar a verdade definitiva em cada artigo; muito mais do que afirmar os seus critérios estéticos subjetivos, ou as suas necessidades de "status" intelectual em cima de um meio (a tevê) ainda sem tradição cultural; cabe, portanto, ao crítico de televisão, saber-se um agente do próprio processo de "fazer" televisão, com todas as limitações e com todo o poder que isso implica. Se o crítico influi no processo, ele é parte dele. Mesmo que não queira. Mesmo que negue o sistema. É uma contradição e uma limitação que tem de aceitar. Criticando teatro, cinema, livro e artes plásticas ele influi no público e na cultura de seu pais (quando é bom crítico). Criticando televisão ele influi no próprio processo de elaboração da televisão. Ele é tão responsável quanto qualquer diretor de emissora. O "crítico" de televisão, querendo ou não, é uma espécie de advogado do consumidor. Amanhã prossigo.

Jornal/Revista: O Globo
Data de Publicação: 29.10.76
Autor/Repórter: Artur da Távola

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